hoje é dia de são joão, dia internacional do disco voador (?), e tem lançamento de
álbum da pabllo (???). eu decidi que ia postar algo aqui hoje pra comemorar o
mês do orgulho, já que eu me encaixo em um monte de bandeiras, mas não sabia
exatamente o que falar — não me agrada a ideia de fazer disso um momento
explicativo, porque simplesmente nunca foi algo que eu senti necessidade de
explicar. deixo vocês então com alguns momentos que representam pra mim o que
é fazer parte da comunidade lgbtqia+ :^)
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“tá, a gente precisa escolher um dia.”
é novembro, o clima está agradável e os dias têm sido maravilhosos. é nosso
último dia juntas até sabe-se-lá quando, e eu sei com toda a certeza que quero
tê-la na minha vida por muitos outros novembros. ela me encara com uma cara
esquisita e me pergunta: “dia pra quê?”. eu respondo que é um dia pra
gente, oras, já que a gente se conheceu pela internet e sei lá qual
seria o dia ideal pra começar a namorar. na minha cabeça, a gente já tá
namorando. ela ri, se afasta do meu abraço, e me encara.
“a gente precisa conversar,” diz, o rosto contorcido naquela expressão que é
meio hahaha-estou-nervosa-mas-vou-fingir-que-tá-tudo-bem. eu sinto o
meu coração parar e pesar, tudo ao mesmo tempo, como se a gravidade dentro do
meu corpo tivesse aumentado. “conversar sobre o quê?,” é minha vez de
perguntar, e ela diz que antes de decidir qualquer coisa ela precisa me contar
algo que pode me fazer não querer escolher dia nenhum. minha cabeça dá
trezentas e sessenta e cinco voltas por segundo. eu enumero as razões pelas
quais ela pode ter dito aquilo:
-
ela matou uma pessoa e é procurada por todo o brasil e em pelo menos 3
outros países;
-
ela tem uma família, uma esposa (ou esposo), filhos, e eu serei A Outra;
- ela tem uma doença terminal e só lhe restam alguns meses de vida;
- ela trafica DROGAS e ÓRGÃOS!!!!
nenhuma dessas razões faria sentido se eu parasse pra pensar por mais algum
tempo, mas a ansiedade já tinha tomado conta de mim. quando nos separamos
naquele dia — só iríamos nos encontrar novamente à noite —, eu decidi não
pensar muito mais nisso.
(no fim das contas, não era nada disso, ela riu da minha cara quando eu disse
o que tinha pensado e eu ri da cara dela quando ela me contou que a coisa
muito importante que precisava me contar é que os pais dela não sabiam que ela
era bi. como se isso fosse fazer alguma diferença pra mim!, eu ri, o
mesmo tempo em que ela encolhia os ombros e dizia um “sei lá”. como se isso
fosse me impedir de manter essa menina na minha vida.)
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eu me encaro no espelho, segurando o cabelo pra trás. bem que dava pra passar por um menino, eu penso, porque meu nariz é grande e minha cara é meio esquisita. fico pensando como seria ter o cabelo curto e ser, de fato, um menino. é difícil pra mim conceber a ideia, já que, até onde eu sei das coisas, a cabeça dos meninos funciona de forma diferente. eles sentem as coisas de um jeito diferente — talvez só tenham prioridades diferentes, eu sei lá. dou de ombros e deixo o pensamento pra lá, voltando a lavar o banheiro.
um bocado de anos depois (e um bocado de desconstrução depois, também), me deparo pela primeira vez com o conceito de não-binariedade. algo entre ser um menino e uma menina, mas ao mesmo tempo não exatamente, e ao mesmo tempo mais ou menos isso aí mesmo. a coisa clica na minha cabeça mais rápido do que eu consigo pensar no que é o conceito, e eu me identifico completamente com alguma coisa pela primeira vez — não só em parte, não pela metade. completamente. me exaspero e guardo aquilo pra mim.
(dois ou três anos depois, finalmente abraço aquilo pra mim, ignorando o medo de não fazer sentido, de não me encaixar, de não ser fora do padrão o suficiente pra ser aceita. entre quedas, tropeços e arranques, frios-na-barriga e dentes apertados juntos de nervoso, decido que não preciso ser como eu acho que outras pessoas querem me ver, aceito ser quem eu sou pra mim mesma e finalmente dou um pouco de paz pra minha mente questionadora, que agora só quer saber de joguinhos)
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“arantxa, você é o quê?”
(coloco entre aspas mas já não me lembro se a pergunta era essa, ou você é bissexual?, ou você tem certeza de que não é hétero?. não faz muita diferença, no fim das contas)
um mundo passa pela minha mente em centésimos de segundo: me lembro de quando minha mãe encontrou meu histórico de conversas no computador, e leu toda a discussão que tive com uma amiga sobre ser bi. à época, eu neguei — meu eu mais jovem só queria menos um problema na vida —, fiz um texto enorme dizendo que aquilo era uma personagem que eu criava pra me enturmar.... vixe, um monte de coisas. eu sabia que estava mentindo, mas era a forma mais fácil de continuar a vida então.
dessa vez, encarei minha mãe e disse, sem piscar: “eu sou bissexual.”
(ou sim, eu sou bi, ou sim, tenho certeza, sou bi. não faz muita diferença, no fim das contas. nunca fez, mesmo quando eu passei a preferir a bandeira da pansexualidade, mesmo quando eu entendi mais sobre mim, sobre o mundo, sobre a vida. mesmo quando eu passei a andar de braços dados com as duas bandeiras ao mesmo tempo. eu sempre tive muita certeza de quem eu sabia que era)
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“o negócio é que eu não sinto a atração, sabe? posso ter vontade, mas não é a atração que me move. é... outra coisa, sei lá,” tentei explicar, encarando o teto escuro do meu quarto, o telefone grudado na orelha. amanda e eu estamos conversando sobre limites e ela me pede pra explicar sobre assexualidade, e eu me pego tendo dificuldade pra formular em palavras algo que é tão natural dentro de mim. “é tipo assim: se acontecer, ok. mas eu não olho pra alguém e sinto vontade de... sabe?” (apesar de falar de cu, cocô e coisas do tipo a torto e a direito na internet, eu ainda sou uma pessoa com vergonha) “acho que entendi,” ela responde. eu falo um pouco mais, explico que pode variar, que eu me encaixo numa área cinza em que não sinto, mas não excluo a possibilidade de sentir, seja lá qual forem os motivos.
ela diz: “eu só queria entender. se você quiser só segurar a mãozinha pelo resto da vida, eu vou segurar mãozinha pelo resto da vida.”
nessa noite, eu durmo com o êxtase que é ser apreciada, respeitada e compreendida.
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é dia dos namorados, e eu acordo com um pix de 100 reais na minha conta. dou uma risada exasperada e devolvo o pix, dizendo “se você me deu 100 reais de presente, eu posso te dar 100 reais de volta!,” enquanto ela se revolta com a minha resistência aos presentes unilaterais. combinamos de comprar comida uma pra outra, ao longo do dia.
mais tarde, a mãe dela me manda uma mensagem de áudio: “queria te desejar um bom dia dos namorados, espero que você esteja bem, e se vocês duas forem ficar mandando pix pra lá e pix pra cá, podem as duas mandar o pix pra minha conta, viu?”. eu dou muita risada e mando um áudio agradecendo minha sogra.
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“eu queria dar um presente que fosse a sua cara,” minha mãe diz, enquanto vê minha namorada abrindo um presente do outro lado da tela. como presente de aniversário, ela mesma teve a ideia de fazer um caderno com uma foto fofa da amanda abraçada à kim, sua filha canina, e também mandou uma caneca de vidro com uma frase de how i met your mother — isso aí foi ideia minha. amanda sorri e diz que adorou o presente. eu bato o olho no caderno combinando que ganhei da minha mãe dias antes, uma foto minha com minha namorada abraçadas, e sorrio também.
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o dia foi difícil, eu estou nervosa e vou precisar encarar um momento ainda mais difícil muito em breve. faz frio, e amanda diz: “vamo tirar uma foto se beijando na frente da havan?”. eu dou uma risada das raras que aconteceram naquele dia, nós tiramos a foto e enrolamos um pouco mais no parque de diversões antes de encarar o inevitável.
eu ouço o que não quero ouvir, eu choro tanto que mal consigo falar ou respirar, eu penso como vai ser minha vida dali pra frente. amanda me diz: eu tô com você. meus amigos me dizem: estamos com você. mais de uma pessoa me diz que eu tenho pra onde ir, se precisar, e eu me sinto abraçada por aquele monte de gente que eu escolhi manter perto de mim, que eu escolhi como minha família. por coincidência ou não, no dia seguinte eu recebo uma ligação me dizendo que não fui selecionada para uma vaga de emprego (o que é um peido pra quem tá cagado, não é mesmo?).
trinta minutos depois, recebo outra ligação dizendo que tinham decidido contratar outra pessoa, e que essa pessoa era eu. é meu primeiro lembrete de que tudo melhora — tudo, seja de uma maneira ou de outra. depois de tanto chorar, eu tenho motivo pra sorrir.
e continuo tendo.
e continuo tendo! :^)